Christine Lagarde dispensa apresentações. Mas há muito que não sabe sobre a mulher que lidera o FMI.
A última vez que me encontrei com Christine Lagarde, a mulher que aos 55 anos, foi nomeada directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), não consegui deixar de contemplar fixamente os seus sapatos. Sim, eu sei que é do mais trivial possível, sobretudo agora que a zona euro está à beira da desagregação, o congresso americano vive um impasse sobre o rumo que a política orçamental deve tomar e os investidores receiam potenciais conflitos sociais. Porém, os sapatos que Lagarde usava nesse dia eram reveladores do seu carácter. Sentada no sofá branco do seu gabinete em Washington, os seus sapatos chamaram-me a atenção por duas razões: não era um modelo inestético, daqueles que algumas mulheres usam para entrar num mundo dominado por homens, nem um daqueles saltos agulha tão apreciados pelas nova-iorquinas para afirmarem o seu poder. Sóbrios, azuis-escuros e em sintonia com a sua autoconfiança, com um ‘je ne sais quoi' de elegância francesa. Absolutamente femininos, embora práticos, emanavam poder.
Dificilmente encontraria melhor metáfora para esta mulher. Há seis meses, Lagarde entrou para os livros de história por ser a primeira mulher a assumir o comando do FMI, substituindo o seu antecessor, o francês Dominique Strauss-Kahn. A sua nomeação foi controversa. Strauss-Kahn fora afastado no início de 2011 devido a um escândalo sexual e, inicialmente, quando se falou no nome de Lagarde para assumir o cargo do seu conterrâneo, as queixas dos países emergentes, com alguma justificação fizeram-se ouvir. Na sua opinião, não faz sentido a França ter o "direito" de preencher novamente o cargo, não reflecte a realidade. Vendo bem, são países como a China e o Brasil que garantem o crescimento da economia global. Além disso, muitos não acreditam que Lagarde actue de forma isenta no principal desafio e dor de cabeça, que se coloca ao FMI: a zona euro. Antes de chefiar o FMI, Lagarde foi ministra das Finanças de França e a primeira mulher a assumir esse papel nas reuniões do G7. Em suma, está no olho do furacão, leia-se, confusão.
No final, Lagarde saiu airosamente da tormenta de críticas, ajudada pela sua reputação de trabalhadora incansável e altamente competente a somar ao seu imenso charme. No momento em que esta entrevista teve lugar, Lagarde enfrenta não um, mas dois grandes testes: com a Europa e os EUA mergulhados na confusão, investidores e políticos mostram-se ansiosos por saber se o FMI e a sua directora-geral podem fazer alguma coisa para aliviar o pânico. Pode Lagarde encontrar uma solução para a Grécia ou Itália, ou inclusive para o seu país natal, a França?
Christine Lagarde está igualmente no centro das atenções por outro motivo, pelo poder que detém. Nunca antes uma mulher ocupou um cargo de tal relevo na finança global. O mundo do dinheiro tem sido, desde sempre, dominado pelos homens, não só nos bancos como nas burocracias.
Lagarde lamentou frequentemente este padrão e chegou a troçar da crise actual dizendo que talvez as coisas tivessem sido diferentes se houvesse "Lehman Sisters" e se, no lugar dos "pais fundadores" do euro, estivessem estado "mães fundadoras". Lembra, a propósito que, então, "não havia uma única mulher sentada à mesa das negociações. Lamentavelmente", acrescenta. Recordo ainda o que me disse recentemente ao telefone: "Gostaria que houvesse mais mulheres no mundo da finança. Seria mais saudável. Não podemos saber se a crise de 2008 teria sido diferente havendo mais mulheres [em cargos chave], mas a intuição diz-me que talvez a evolução dos acontecimentos tivesse sido outra."
Actualmente, Lagarde, assim como Angela Merkel, é uma mulher poderosa. Mas a que ponto poderá, enquanto líder do FMI, fazer a diferença? Irá mostrar o caminho a seguir? Ou acabará esmagada pela burocracia e pelos pesadelos políticos que assolam o Ocidente e o FMI? "Sei que outras pessoas vêem em mim um modelo a seguir e que algumas jovens mulheres buscam inspiração na minha pessoa. Pessoalmente, não gosto que isso me tolde o juízo, mas no fundo é como Sartre dizia, somos como os outros nos vêem. É uma grande responsabilidade".
Recorda que foi sempre uma pessoa responsável e determinada. Nasceu em Paris em 1956, filha de pais burgueses e católicos devotos. A família mudou-se para a Normandia pouco depois. O pai era professor universitário e Lagarde que tem três irmãos mais novos cresceu num ambiente marcado pela disciplina, no qual, apesar de tudo, houve espaço para o afecto. Frequentou o liceu em Le Havre e, na adolescência, ingressou nos escuteiros e dedicou-se aplicadamente à natação sincronizada, tendo ganho a medalha de ouro nesta modalidade no campeonato nacional francês. Foi a natação sincronizada que lhe ensinou a "suster a respiração" e a trabalhar em equipa.
No final da adolescência, teve de enfrentar duas grandes lições de vida. A morte do pai obrigou a mãe a tomar conta da família aos 38 anos: "A minha mãe tinha uma personalidade forte. Aprendi muito com ela". A avó é outra das suas referências femininas. "Uma pessoa extraordinária. Foi enfermeira durante a Primeira Guerra Mundial e emancipou-se de um casamento em que não se sentia feliz". O segundo momento marcante na vida de Christine foi a bolsa de estudos que ganhou para frequentar a super exclusiva Holton-Arms, em Bethesda, perto de Washington, EUA, onde aprendeu inglês e se deixou imbuir das tradições e pensamento anglo-saxónicos. Estagiou com um senador norte-americano e regressou a França para estudar Direito na Universidade Paris X. Depois, candidatou-se à Ecole Nationale d'Administration (ENA), que tem formado a nata da Função Pública francesa. Foi rejeitada duas vezes para seu grande desgosto. Em 1981, depois de um Mestrado em Ciência Política, ingressou no escritório Xparisiense da reputada firma de advogados americana Baker & McKenzie.
Lagarde ascendeu rapidamente na hierarquia. Pel o caminho, ninguém ficou indiferente a esta mulher competente e determinada. No entanto, anos depois, viu-se confrontada com o clássico dilema feminino: casou com vinte e poucos anos (o enlace não durou muito), teve o primeiro filho aos 30 e, dois anos depois, viria o segundo filho, pouco depois de ter sido promovida a ‘partner' da firma. "Sou de outro tempo, do tempo em que as mulheres [na vida activa] tinham de se afirmar, ser corajosas e seguir em frente". Recorda que trabalhou "até ao último minuto das duas vezes que esteve grávida. Os meus filhos deram provas de inteligência ao nascerem em Maio e Junho, porque assim pude tirar férias no Verão para os amamentar e regressar ao trabalho no Outono.
"No geral, é mais fácil ser mãe trabalhadora em França do que nos EUA, porque os americanos não dispõem de um apoio importante que há em França: uma boa rede de infantários. Orgulho-me de poder dizer que o FMI tem uma creche. Se visitar a sede pela manhã, vai ter o prazer de ver um grupo enorme de mães com os seus bebés. É um momento muito animado!".
A ascensão de Lagarde fez-se conciliando carreira e vida pessoal. Diz que nunca foi "mãe galinha" "porque não tinha tempo" para passar horas a supervisionar os trabalhos de casa dos filhos. "O sentimento de culpa está sempre presente, claro, mas sou como sou. O melhor momento é aquele em que, já crescidos, nos dizem o quanto valorizam o que fizemos por eles. Um dos meus filhos disse-me isso mesmo quando tinha 11 anos. Foi um momento verdadeiramente importante para mim".
Em 1999 foi a primeira mulher nomeada para a direcção da Baker & McKenzie e a primeira directora de outra nacionalidade que não americana. Instalou-se em Bruxelas e o trabalho aí feito começou a chamou a atenção do governo francês. Em 2005 mudou de carreira, trocou Bruxelas por Paris e vestiu a pele de ministra, primeiro do comércio e, depois, da agricultura. Em 2007, Nicolas Sarkozy foi eleito presidente e nomeou-a ministra das Finanças, pouco antes da crise financeira eclodir.
Foi nessa qualidade que conquistou vários apoios no círculo restrito dos líderes do G7, em particular devido ao seu temperamento, marcado pela serenidade, e à competência evidenciada na gestão de calamidades financeiras. O facto de ser mulher e de ter um cargo chave no executivo francês fez dela uma pessoa invulgar, a somar à circunstância "insólita" de não ter passado pela incontornável ENA. Curiosamente, muitos dos seus colegas no Eliseu tratavam-na por "a americana" por falar inglês idiomático sem sotaque e por estar familiarizada com a "maneira de ser e de estar" dos anglo-saxónicos.
Essa alcunha não a impediu de defender os interesses franceses de forma enérgica, ao ponto de divergir publicamente de Hank Paulson durante a crise financeira e de, por vezes, ser altamente crítica face às políticas da administração norte-americana. A sua presença no filme Inside Job, A Verdade da Crise, vencedor do Óscar de Melhor Documentário, não passou despercebida. À pergunta "como reagiria quando os EUA deixassem falir o Lehman Brothers", respondeu muito simplesmente: "Fogo!", naquela que é uma das tiradas mais sarcásticas e memoráveis do filme. Apesar das suas críticas à política de Washington, os anos em que exerceu como advogada numa firma americana deixou marcas na sua visão do mundo, agindo, por vezes, num estilo claramente anglo-saxónico. Por exemplo, não perde o sono quando se trata de despedir colaboradores incompetentes.
Da mesma forma que não condena o hábito da imprensa americana de escarnecer e satirizar o universo político, na condição de esse exercício ser feito com elegância e sentido de humor. É preciso saber rir-se dos outros e de si próprio. Em 2009, por exemplo, foi convidada para participar num ‘chat show' na televisão americana. Apareceu de boina, imagem tipicamente associada aos franceses e passou o tempo a contar piadas e anedotas.
Como é que Lagarde se vai sair agora que trocou o Eliseu por Washington? Muitos líderes europeus já elogiaram o seu auto-controlo e persistência. Deu nas vistas em todas as funções que assumiu pela sua "personalidade forte e firmeza de carácter", observou Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. Pouco depois da sua nomeação para o FMI, Timothy Geithner, secretário do Tesouro americano, elogiou a sua "ampla experiência" e o facto de ter desenvolvido uma boa relação de trabalho com os seus pares na qualidade de ministra das Finanças, sem deixar de defender energicamente os interesses do seu país. O seu homólogo britânico, George Osborne, diz ser um "fã" de Lagarde e faz questão de dizer que a sua nomeação para o FMI foi uma "boa notícia, não só para a economia global como para a Grã-Bretanha", uma vez que "é a pessoa certa para o cargo."
Os seus colegas do Fundo dizem que já houve mudanças na comunicação: enquanto Strauss-Kahn dava ordens e contava com o apoio de um pequeno círculo de conselheiros, Lagarde deu-se ao trabalho de consultar um vasto leque de pessoas antes de pôr as suas ideias em prática. "O meu estilo de liderança é mais inclusivo. Haverá quem diga que é por eu ser mulher. De facto, sou a primeira a defender que as mulheres tendem a ser mais inclusivas. Sou assertiva quando se trata de formar equipas, mas gosto de ouvir muitas opiniões e sugestões antes de passar à prática".
É a primeira a reconhecer que esta abordagem pode ter alguns inconvenientes. Alguns observadores receiam que seja excessivamente ortodoxa na sua abordagem pelo facto de procurar consensos ou em resultado do seu percurso pouco convencional, que poderá perversamente, fazê-la adoptar políticas mais convencionais. Eis um aspecto que preocupa alguns críticos, para quem a crise actual exige estratégias económicas corajosas. Para piorar as coisas, Lagarde não tem formação em economia, o que a obriga a depender da opinião de conselheiros na área.
Lagarde continua empenhada em trazer mais mulheres para cargos de topo enquanto parte activa da sua estratégia de "inclusão". Está focada na meta que traçou para o FMI em termos de cargos de topo no feminino. Lagarde quer atingir os 30%.
Fonte: Ecónomico
Fonte: Ecónomico
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