É a voz que mais se levanta contra o resgate aos países em apuros. Não quer pagar dívidas alheias e admite abandonar a zona euro.
A crise são parágrafos de página de jornal. Nunca se atreveu a bater-lhe à porta, tão-pouco a espreitar a rua de prédios elegantes, sequer a pisar a cidade. Selinda Näse vive em Helsínquia há uma década, tem na capital um dos seus amores. Aos 34 anos, advogada num dos maiores escritórios da Finlândia, acredita que a crise é mal sem lugar no seu diário.
No julgamento da Moody's, o país é o único da zona euro a manter um estável triplo A. Bem-haja o sucesso das exportações, o desenvolvimento da indústria tecnológica e a solidez da banca, fiel a uma política conservadora e focada no mercado interno. O sol cruza a janela da sala num sorriso, não há cortinas nem estores, nada atrapalha "a vida fácil dos finlandeses".
Às vezes, Selinda nem cansa a paciência a ler as piores notícias. Chegam de longe, de países do Sul da Europa, paragens que rimam com férias, dívida, incumprimento do défice e corrupção. Ela, estudos e viagens vividas, não alinha na ideia feita, desconfia que há muitas maneiras de se pintar um retrato, que as razões da crise estão mal explicadas. Mas sabe que muitos finlandeses preferem o discurso eurocéptico. Numa sondagem realizada em Julho por seis jornais, um terço da população dizia querer abandonar o euro. A bagagem académica parece ditar opiniões - entre os inquiridos, metade dos que possuem o ensino básico anseia regressar ao antigo marco finlandês, já 84% dos que têm diploma universitário defende a continuação na zona euro.
Sentada no sofá branco, Selina arruma o cabelo louro. Vive em Punavuori, bairro a dois passos do centro, conhecido pelas lojas e bares na moda. A cidade é pequena, não muito longe ficam os bairros mais exclusivos, metro quadrado entre seis e oito mil euros. Desde que trabalha, comprou dois apartamentos: "Um advogado em início de carreira recebe cerca de 3.200 euros". E ela há muito se fez sénior. Tem direito a cinco semanas de férias, se durante o ano cumprir além da conta, conquista mais uma. Deposita o olhar nas vidraças, na terra dos extremos: "Hibernamos no Inverno e acordamos na Primavera". Na estação fria, durante semanas é noite o dia inteiro; no Verão, o sol brilha à meia-noite. O quinto maior país da União Europeia (UE) tem a densidade mais baixa do clube, umas 114 almas por quilómetro quadrado. Com metade da população portuguesa, é o Estado-membro que mais aponta o dedo à política de resgate financeiro.
Para alinhar no apoio à Grécia e à banca espanhola, insiste na assinatura de acordos bilaterais que lhe garantam o menor risco. Com o apoio da Holanda, ameaçou vetar uma importante medida para a sobrevivência do euro - a possibilidade do Mecanismo Europeu de Estabilidade comprar dívida de Itália e Espanha no mercado secundário, de forma a baixar as taxas de juro exigidas pelos investidores. O mecanismo acabou por ser ratificado, ainda que apenas com a aprovação de 104 dos 200 deputados. E a ministra das Finanças sublinhou que o país "não se agarra ao euro a qualquer preço", admitindo a possibilidade "de abandonar a moeda única".
Mas, afinal, o que leva os finlandeses a oporem-se à ajuda? Mika Palo, professor de finlandês e representante em Portugal do Instituto Ibero-Americano da Finlândia, acredita que a resposta está no passado. No início da II Guerra Mundial, o país enfrentou sozinho a vizinha URSS - perdeu algum território, mas não a independência. No final da guerra, foi a vez de lutar contra os alemães. A paz colocou-o no campo dos vencidos, ficando obrigado a pagar à URSS uma pesada indemnização: "Cumprimos até ao último tostão". Mais tarde, no começo dos anos 90, sofreu uma forte crise económica: "Recuperámos com muito esforço e dor, mas sem pedir dinheiro a ninguém. Há uma cultura de responsabilidade que nos faz achar injustas estas políticas de resgate".
Selinda traz a casa impecavelmente em ordem, nem um ‘bibelot' a atrapalhar o design simples, ares de andar modelo em condomínio à venda. Especialista em direito empresarial, sempre acreditou que os finlandeses acabariam por seguir as decisões de Bruxelas: "Ninguém adivinha as consequências da implosão do euro. A maioria é a favor da ajuda, mas a percentagem contra faz muito barulho". Filha de um engenheiro e de uma gestora de topo, bem se lembra de a mãe lhe repetir vezes sem conta: "Tens de ganhar o teu próprio dinheiro".
Independência e poupança vincam a identidade nacional. Até aos 20 anos, data em que rumou à Suécia, nunca se apercebera da existência de classes sociais. A Finlândia orgulha-se de ser uma sociedade igualitária, homens e mulheres, ricos e pobres, todos têm acesso ao mesmo mundo. Atravessa a sala descalça, sapatos e casaco são traje de rua, deixam-se à porta: "A principal característica dos finlandeses é o respeito pelas regras". Talvez por isso, Selinda, férias na Ericeira a equilibrar-se na prancha de surf e nos costumes lusos, muito se tenha admirado de escutar os portugueses: "As regras são feitas para quebrar". Vagueia o olhar pelas paredes, pelos móveis brancos: "Aqui, tudo funciona". Tanto que, às vezes, não se respira improviso. Apanha o cabelo, detém-se na janela. Estão 21 graus, à tarde há-de caminhar até um dos parques que povoam a cidade, gente e cerveja na relva.
Da casa de Selina à redacção do Helsingin Sanomat, jornal com famas de conceituado, são quinze minutos de eléctrico. Pintados de verde e creme, cruzam a cidade sem segundo de atraso nem vestígio de sujidade. Elonen Piia, editora adjunta de política nacional, afirma que os momentos de crise evidenciam as diferenças culturais: "Para o povo finlandês é incompreensível que alguns países não tenham cumprido o limite do défice e que agora não paguem as suas dívidas sozinhos". Anda entre uma secretária e outra: "Confiamos nos bombeiros, na polícia, nos políticos. Até termos um pequeno escândalo no financiamento de campanhas eleitorais, acreditávamos que não existia a mínima corrupção. E, na verdade, quase não existe". O Índice de Percepção da Corrupção de 2011, elaborado pela Transparência Internacional, dá-lhe razão - a Finlândia partilha com a Dinamarca o segundo lugar, logo a seguir à Nova Zelândia. Portugal ocupa o 32º posto.
Selinda gosta de café acabado de fazer. Tira a cafeteira do lume, o cheiro caminha até à sala, acomoda-se nas chávenas. Sabor igual ao lanche de casa dos avós. Ajeita-se no sofá, nas recordações. Uma amiga descobriu em casa da avó uma caixa com ‘collants' rotos e uma nota: "Para um dia de aflição". A história é um sorriso triste. As provações passadas na II Guerra Mundial aliadas aos princípios da igreja luterana semearam o valor da poupança. Selinda aquece as mãos na chávena. A recessão, que no início da década de 90, deixou os finlandeses nas mãos da austeridade, foi adubo: "Aprendemos muito com essa crise, o crédito não é amigo". Agora, anda a poupar para a maior das aventuras. Pediu uma licença sem vencimento e matriculou-se no curso Advanced Internacional Business Law da Universidade Católica de Lisboa. Em Setembro, há-de descobrir quanto custa pagar uma escola. "Poder viajar sem visto nem câmbio para Portugal é uma das maravilhas da UE. Os políticos têm de resolver a crise".
Fonte: Económico
Fonte: Económico
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