Exposição mostra uma centena de documentos que fizeram a história da Europa e do mundo e que pela primeira vez saem do arquivo dos papas, que acaba de fazer 400 anos. Galileu está lá.
O mais impressionante será, talvez, o rolo com o processo dos Templários. Sessenta metros de pergaminho que incluem 231 confissões de outros tantos cavaleiros do Templo, redigidos entre 17 e 20 de Agosto de 1308, perante os três cardeais enviados pelo Papa Clemente V ao castelo de Chinon, em França. Nos depoimentos pode ler-se o confronto entre o medo dos cavaleiros templários em se contradizerem e o frustrado desejo de defender a sua ordem. A contradição significava a morte.
O mais comovente será, talvez, a assinatura de Galileu Galilei. O volume de pergaminho mostra a página em que o cientista aceita a sentença que contra ele pronunciara o cardeal Roberto Bellarmino, presidente do Tribunal do Santo Ofício. Narra a história que Galileu tomou uma vela na sua mão esquerda enquanto colocava a direita sobre a Bíblia, ajoelhando-se e abjurando as suas afirmações científicas. Foi em 22 de Junho de 1633, no convento de Santa Maria Sopra Minerva, em Roma.
Colocado numa espécie de passadeira rolante, o rolo com o processo dos Templários é um dos 100 documentos da História da Europa e do mundo que se podem ver na exposição Lux in arcana - L"Archivio Segreto Vaticano si rivela (Luz sobre os enigmas - o Arquivo Secreto Vaticano revela-se). Uma exposição inédita, aberta pela sentença de Galileu, patente nos Museus Capitolinos, de Roma (Itália), até 9 de Setembro. É um acontecimento histórico porque, pela primeira vez, estes documentos saíram do arquivo papal e podem ser agora contemplados por todos.
Mostra-se aqui apenas uma milionésima parte do Arquivo Secreto, criado formalmente há 400 anos pelo Papa Paulo V e que reúne documentação dos séculos VIII ao XX. Secreto vem do latim secretum e quer dizer privado. Ao longo dos séculos, os papas foram guardando documentos e correspondência relativos ao exercício do seu ministério.
Hoje há mais de 650 fundos de arquivos diferentes, arrumados em 85 quilómetros de estantes, a maior parte delas colocadas em instalações de acesso reservado, no subsolo do Cortile della Pigna, onde todos os dias passam milhares de visitantes dos Museus do Vaticano. São milhões de documentos, dos quais 30 mil pergaminhos, que desde 1881 estão disponíveis à consulta de investigadores, sem distinção de nacionalidade ou religião.
O último núcleo da exposição, o do "período fechado", mostra mesmo documentos duplamente inéditos, já que se referem ao pontificado de Pio XII. Os arquivos do Papa Pacelli estão ainda a ser tratados e deverão ser abertos dentro de dois anos. Bento XVI tem vontade de apressar essa abertura, já que o comportamento de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial tem sido objecto de debate e polémica. Os documentos expostos referem-se a episódios e memórias fotográficas de vítimas do conflito.
Na exposição, podem ver-se também 85 selos de deputados a favor dos amores de Henrique VIII (1530). Ou uma carta de Lucrécia Bórgia ao seu pai, o Papa Alexandre VI, avisando-o contra a chegada do exército francês a Roma, em 10 de Junho de 1494. Ou ainda a caligrafia delicada de um califa, também a 10 de Junho, mas de 1250 (648 no calendário muçulmano), e uma carta da última imperatriz da dinastia Ming, escrita num pedaço de seda em 1650, no "11.º dia da 10.ª lua do quarto ano do reino do imperador Yongli". E pode ver-se também o mais antigo documento em língua mongol (1279) ou uma bula do Papa Clemente VIII em língua quechua (1603).
Poetas e rainhas
A exposição organiza-se em dez núcleos: no primeiro, Os guardiães da memória, mostram-se documentos fundamentais ou curiosidades da história da Igreja Católica ou da humanidade. Cabem aqui o processo de Galileu, mas também o cancioneiro do poeta persa Muhtašam-i Kašani (1582), a aprovação da regra de São Francisco de Assis (1223) ou a entrega de uma condecoração honorífica a Mozart (1770).
Nas secções Tiara e coroa e Sinais de poder, expõem-se documentação relativa aos conflitos ou aproximações entre o poder dos papas e dos reis ou imperadores, como a Concordata entre a Santa Sé e Napoleão (responsável por ter levado o Arquivo do Vaticano para Paris, entre 1810 e 1815, o que fez com que se perdessem documentos preciosos) ou o nascimento do Estado do Vaticano (1929). O ouro e a tinta e Nos segredos dos conclaves revelam episódios de eleições ou deposições de papas (como a de Urbano VI, em 1378, dando origem ao Cisma do Ocidente, ou do único Papa que renunciou ao cargo, Celestino V, em 1294). A reflexão e o diálogo inclui uma carta do Papa Clemente XII ao vice do Dalai Lama, em 1732, bem como a convocatória de João XXIII para o Concílio Vaticano II, em 1961, que se traduziu na actualização da Igreja Católica. E sobram ainda retratos de pessoas: heréticos, cruzados e cavaleiros, santas, rainhas e cortesãs, e cientistas, filósofos e inventores. Aqui se incluem apelos desesperados como o de Maria Antonieta de França ou de Nicolau Copérnico, as condenações de Giordano Bruno ou Martinho Lutero, o horror do Papa Inocêncio III com os relatos das cruzadas e uma carta do anticlerical Voltaire ao "pai do mundo", o Papa Bento XIV.
A mostra Lux in Arcana inclui ainda, no final, alguns fragmentos de documentos, através dos quais se pode perceber o que acontece quando os insectos, a humidade ou a luz, entre outros factores, destroem preciosidades de arquivos.
Uma vertente multimédia está disponível no site oficial da exposição (www.luxinarcana.org), onde se podem ver alguns dos documentos mais significativos. Também é possível descarregar gratuitamente uma aplicação para Android e iOS que permite fazer uma visita guiada.
Na carta Humanae Salutis, com que convocou todos os bispos católicos para o Concílio Vaticano II, em 1961, o Papa João XXIII escrevia: "Se o mundo aparece profundamente mudado, também a comunidade cristã está em grande parte transformada e renovada: isto é, socialmente fortalecida na unidade, intelectualmente revigorada, interiormente purificada, pronta, desta forma, a enfrentar todos os combates da fé." Muitas transformações e muitos combates se contam nestes documentos.
Tordesilhas e a Passarola de Gusmão
Há dois documentos relacionados com Portugal expostos na Lux in Arcana: a bula Inter Cetera (1493), do Papa Alexandre VI, o valenciano Rodrigo de Borja, que estabelece a partilha do mundo entre Portugal e Espanha, inicialmente consagrada no tratado de Alcáçovas (1479) e em 1494 corrigida pelo tratado de Tordesilhas; e o desenho da Passarola do padre Bartolomeu de Gusmão.
Na bula, Alexandre VI estabelecia que os territórios a oeste de um meridiano imaginário, a 100 léguas dos arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, passariam a estar submetidos aos reis de Castela. Um ano depois, em Tordesilhas, o novo acordo passaria a zona de influência portuguesa até às 370 milhas para oeste dos Açores, o que incluía já uma parte importante do que é hoje o Brasil. Este facto faz com que vários historiadores pensem que D. João II teria já informações sobre a existência do território do Brasil.
O segundo documento é o desenho da "Passarola de Gusmão" (na foto), incluído num dos manuscritos do Fundo Bolognetti. Nascido em Santos (São Paulo, Brasil, então ainda colónia portuguesa), em 1685, o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão esteve em Portugal por diversas vezes, tendo sido perseguido pela Inquisição. Em 1709, conseguiu do rei D. João V a autorização de construir um aeróstato e, em Outubro desse ano, mostrou mesmo a sua invenção ao rei e à rainha, Mariana d"Áustria, bem como ao núncio apostólico, o cardeal Michelangelo Conti, futuro Papa Inocêncio XIII.
Esta primeira experiência da "máquina para viajar de barco no ar", recorda o catálogo, pode ter sido apenas um balão de ar quente. O desenho de Gusmão deve ser apenas uma forma de chamar a atenção para as suas experiências.
Fonte: Jornal Público
Fonte: Jornal Público
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